sábado, 19 de março de 2016

PENA


Era noite, fazia frio.
Deitado na cama em meu quarto eu observava a lua que projetada sua luz pálida pela janela aberta. Meu braço direito servia de apoio para minha cabeça, a mão esquerda trazia, a intervalos cada vez mais curtos, o último companheiro encontrado no maço de cigarros largado em algum canto do quarto.
Pensamentos vinham e retornavam tão rápidos que mal conseguia identifica-los, entretanto lembro que nenhum era positivo.
Por fim o meu último companheiro se apagou. Larguei a guimba ao chão.
Segundos depois uma lágrima escorreu, mas não me recordo o porquê. Porém antes que a segunda se apresentasse minha antiga companheira apareceu ao meu lado e limpou meu rosto com seus dedos. Ela sentou na cama, apoiou minha cabeça em seu colo, começou a acariciar meu rosto e a afagar meus cabelos. Por fim sorriu para mim. Estava linda, se eu fosse um poeta faria versos sobre ela, poderia dizer que a lua estava pálida de inveja pela beleza de minha amante. Mas não sou poeta.
Não me contive e acabei por quebrar o silêncio para lhe trazer uma pergunta.
- Esse mundo está uma merda. Porque diabos ninguém consegue viver em paz? É tão difícil assim? – Percebi que o silêncio ser assassinado não lhe agradou e por alguns segundos ela apenas me fitou com seus olhos de ônix. Mas bem lá no fundo eu vi uma chama se acender – O que foi? – perguntei com uma voz que não era minha, uma voz abafada, quase que um esforço sobre-humano para se externalizar. - Tem alguma resposta para os questionamentos de um pobre ser humano mortal?
Arrependi-me no exato instante em que terminei a pergunta, sabia que se ela respondesse seria algo que não gostaria de ouvir, por outro lado, se ela não me desse uma resposta eu odiaria o silêncio que cairia sobre nós. Mas ela respondeu... Ela não perderia a oportunidade de me dar àquela resposta.
- Vocês se matam em nome do amor... Odeiam em nome de deus... Desprezam os outros em função do próprio ego e depois querem encontrar a felicidade em meio ao caos e destruição que vocês mesmos criaram. Por fim culpam terceiros por tudo o que está de errado com suas vidas, fechando os olhos para a parcela de culpa que cada um de vocês carrega.
Ouvi com atenção cada palavra. Ela não retirou os olhos de mim nem por um segundo enquanto falava. Sua mão em minha cabeça não vacilou. Ela trouxe raiva, em sua voz, ódio em seus olhos, mas seus gestos continuaram amenos. Deslizou seus dedos por minha face, cada dedo de mármore terminava em uma unha afiada como um bisturi.
Por fim retirou cuidadosamente minha cabeça de seu colo e levantou. Caminhou em direção à janela, olhou brevemente para a rua e voltou-se para mim. Seu rosto estava escuro, talvez pelo contraste com a luz da lua que penetrava o quarto. Não conseguia discernir suas feições, mas escutei sua voz, dessa vez sem raiva ou ódio...
- Vocês são dignos de pena.
Suas palavras me atingiram como um soco. Fechei os olhos pelo que para mim foram segundos, mas quando voltei a abrir, ela já havia ido. Mas sei que voltará... Ela sempre volta.

E mais uma vez estava sozinho no velho e mofado quarto escuro.

NOSSAS MUDANÇAS

Evitamos a mudança sempre que possível, mas nem sempre estamos dispostos a organizar tudo enquanto podemos. Estamos acostumados a jogar a poeira para debaixo do tapete, vamos procrastinando reflexões, atitudes, conversas. Vamos adiando a limpeza deixando a faxina para depois, até o ponto onde não se distingue mais o que está limpo do que está sujo, não reconhecemos mais a casa onde moramos frente a tanto entulho, tantas coisas fora de lugar, observamos tudo o que não se encaixa mais, e nesse momento decidimos que devemos mudar.
Desejamos que o novo seja melhor que o anterior, mas esquecemos de que o local é apenas uma casca onde nós somos o interior. Podemos mudar de espaço, mas carregamos nas costas os pesos outrora inquietantes, o que muda é a forma de organizá-los no novo espaço. Seria melhor uma faxina constante, pois assim tudo se ajeitaria sem que precisássemos fugir do que nos incomoda. Alias talvez fugir não seja a melhor palavra a se usar, uma vez que continuamos evitando aceitar que, sim, por vezes fugimos. Para nós é vergonhoso admitir a fuga de algo, damos preferência a palavras mais macias.
O processo de mudança quase nunca é agradável, mas se faz necessário.
Começamos com a coragem necessária para o ato, seguida da limpeza superficial, passamos a guardar coisas em caixas e nesse momento nos deparamos com a decisão do que fica conosco e o que não nos serve mais. Esse é o ponto crucial, e talvez por isso, muitas vezes negligenciado. Afinal se essa etapa fosse fácil, não precisaríamos mudar de fato, bastaria nos dedicar à faxina.
Mas mesmo sendo doloroso estamos em um ponto onde não há mais retorno e por isso temos que mudar. Entretanto em alguns momentos olhamos para trás, olhamos para a casa anterior, em alguns casos sentimos até um pouco de saudades. Todavia mudamos e assim como evitamos a faxina, assim como evitamos admitir que fugimos, também não aceitamos que vejam nossa antiga casa como ela era, o próximo inquilino não deve olhar para as antigas imperfeições, os arranhões causados pelos moveis, as manchas nas paredes, as marcas que por fim nos incomodaram ao ponto de nos fazer mover. E então pintamos tudo. As imperfeições ainda estão lá, porém escondidas por uma fina camada de tinta.
O próximo a ocupar aquele espaço finge que tudo está bem, pois não quer sair de um incomodo e aceitar que o novo espaço não é perfeito. E nós que mudamos ficamos felizes, pois temos a ilusão de que tudo será diferente e melhor.

Até que aproxima mudança seja necessária.